Opinião

A covid-19, o pós-pandemia e o SNS

Há que refletir sobre tudo o que o SNS passou na pandemia, pois só assim poderemos sair mais fortes de toda esta tormenta

Um tremendo obstáculo para os sistemas de saúde em todo o mundo. Praticamente um ano depois da covid-19 ter chegado a Portugal (o primeiro caso foi diagnosticado a 2 de março de 2020), é desta forma que podemos desde já caracterizar esta pandemia. Arrisco mesmo afirmar que é o maior desafio ao sistema de saúde português desde a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), pela incomparável pressão assistencial que provoca nos vários níveis de cuidados, quer primários quer hospitalares; e nestes últimos, tanto nos serviços de urgência, como em enfermaria e em cuidados intensivos.

Muitas das consequências a longo prazo estão ainda por identificar com clareza. Como em muitas facetas nas nossas vidas, é nas circunstâncias mais desafiantes ou de maiores dificuldades que sobressai o que temos de bom e o que temos de menos bom. Isso sucedeu também no sector da saúde neste contexto pandémico, pelo que, quanto mais não seja, os momentos que vivemos permitem-nos perceber onde melhorar no futuro, assim queiramos fazê-lo. Apesar de ainda vivenciarmos a pandemia em todo o país, com forte impacto económico, social e na saúde, há já aspetos que podemos assinalar, para que todos os stakeholders os possam pensar e analisar.

Um desses aspetos é a coordenação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados de saúde hospitalares. Apesar de todos os esforços de encurtar a distância entre ambos e de aumentar a articulação existente, o SNS continua a ser um sistema “hospitalocêntrico”: todos os elementos que o constituem, todos os profissionais que o integram, reconhecem que vivemos o primado do doente, do cidadão e da sua família. Mas, na prática, são os hospitais e as suas idiossincrasias de funcionamento que compõem o centro do sistema.

Claro que os Cuidados de Saúde Primários (CSP), por estarem mais próximos do cidadão, deveriam ter um papel mais preponderante no nosso sistema de saúde. Contudo, fruto da forma como são feitos o financiamento e o controlo/coordenação sobre os cuidados de saúde prestados à população, bem como das reformas dos CSP dos últimos anos, estes foram-se progressivamente isolando e afastando da realidade vivida pelos profissionais dos hospitais. Tal sucedeu com prejuízo para os utentes e para todo o sistema, que se torna assim menos eficiente. Não que a reforma dos CSP iniciada em 2005 não tenha trazido mais-valias para a saúde das populações: isso está demonstrado em vários trabalhos sobre os benefícios em saúde obtidos, por exemplo, pelas USF modelo B. Simplesmente não trouxe o que poderia e deveria ter trazido em termos de articulação com a prestação de cuidados nos outros níveis de saúde, nomeadamente e em particular o hospitalar. A visão tem sido sectorial e em silos, em vez de integrada e unificadora.

A coordenação da resposta com os hospitais, o famoso chavão da “integração vertical dos cuidados de saúde”, que todos advogam e nem todos praticam, é uma luta diária para quem gere um hospital e está ainda longe de ser uma realidade enraizada em todo o SNS. Existem ótimos projetos que se desenvolvem um pouco por todo o país neste domínio, mas que deveriam ser mais do que projetos isolados.

Os caminhos a seguir podem ser diversos, mas a utilização de um financiamento por capitação que acompanhe o utente nos vários níveis de cuidados, como ocorre, em parte, nas Unidades Locais de Saúde, modulado pelos ganhos em saúde obtidos, poderá ser uma solução. Esta metodologia poderá promover os resultados, a efetividade e a eficiência de todo o sistema de saúde. Caso não se altere o rumo atual e todos os atores da saúde assumam não sair das suas zonas de conforto e encontrar novos modelos de coordenação, acentuaremos as distâncias e as clivagens entre cuidados de saúde primários e hospitalares. Tal sucederá com claro prejuízo dos cidadãos, tanto na qualidade dos cuidados que recebem como na eficiência de todo o sistema de saúde.

Da mesma forma, a resposta dos hospitais carece de uma coordenação consistente e eficaz: a tão falada resposta “em rede”, que não se resuma às redes de referenciação hospitalar, frequentemente usadas para mediar atritos surgidos na transferência de doentes entre instituições. A mesma resposta coordenada, que penso ser vital entre CSP e hospitais, é também fulcral entre os próprios hospitais. Por que razão mantemos hospitais claramente subdimensionados a servir populações que ultrapassam largamente a sua capacidade de resposta, por exemplo nos serviços de urgência (mas não só)? Por que razão é tão difícil em algumas regiões criar Urgências Metropolitanas em especialidades cuja escassez de médicos torna insustentável que se pretenda que existam em todos os hospitais?

A manifesta assimetria entre as taxas de esforço dos hospitais na resposta aos doentes COVID - verificada desde sempre na região de Lisboa e Vale do Tejo e agravada desde dezembro passado com uma nova vaga pandémica - é outro facto que mostra claramente a necessidade da melhoria da articulação entre as instituições hospitalares. Seguramente que todos os gestores hospitalares deram o seu melhor e procuraram acima de tudo salvaguardar a resposta aos seus utentes, mas é necessário que exista uma visão macro e que consiga tornar o somatório do contributo de todos os hospitais numa efetiva mais-valia para o SNS e para todos os cidadãos.

Nos dois pontos focados anteriormente há uma característica comum: a falta de uma resposta coordenada. Ora, quando na época pré-covid se considerava serem as Administrações Regionais de Saúde (ARS) a coordenar todas as respostas nos vários níveis de cuidados, a pandemia mostrou várias fragilidades a este nível, pelo menos no caso da Região de Lisboa e Vale do Tejo, em que a meu ver não foi capaz de corporizar o necessário comando no terreno para tornar a resposta das várias instituições una, eficiente e efetiva. Não estão em causa os elementos que a constituem, que fique bem claro, pois muitos deles são excelentes profissionais com longas carreiras no SNS. Provavelmente, o que originou maiores dificuldades em alinhar as respostas destas instituições terá sido o labirinto jurídico criado ao longo do tempo sobre os estatutos dos vários modelos de organização hospitalar, ao atribuir a muitas destas organizações “autonomia” de ação com uma latitude que muitos descobriram agora ter.

Sucede que, num contexto de crise, tende a mais facilmente sobressair a lógica de salvaguarda do interesse particular das instituições e menos a lógica do interesse da resposta em grupo. Assim, uma efetiva intervenção supra hospitais é fundamental para moderar individualismos e para corrigir assimetrias. Os modelos de coordenação futura poderão passar pelas ARS ou por outras entidades, podendo implicar a alteração do estatuto jurídico dos hospitais ou da sua articulação com as ARS. Contudo, qualquer que seja o modelo, terá necessariamente de funcionar de forma mais ágil, permitindo uma capacidade efetiva para implementar no terreno as deliberações dos decisores.

É igualmente importante salientar o papel que as instituições de saúde privadas ou do sector social foram progressivamente desempenhando durante a pandemia. Por razões várias, a colaboração prestada ao SNS foi assimétrica regional e temporalmente. Contudo, restam neste momento poucas dúvidas que as linhas de possível colaboração são diversas e não devem ser ignoradas, quer na resposta à pandemia de COVID-19, quer na participação na recuperação da atividade programada do SNS que não foi realizada devido à pandemia. Esta cooperação deve ser baseada em moldes de colaboração rigorosos e claros, definindo as áreas em que tal pode ocorrer e sem comprometer a carteira de serviços do SNS e os seus recursos próprios. Com uma colaboração sinérgica e não apenas comensal - em que muitas vezes o SNS sai a perder por ter, em vários aspetos, menor capacidade de atração de recursos humanos - os sectores privado e social podem desempenhar um papel importante na resposta às necessidades de saúde das populações.

Independentemente de ideologias políticas ou de ideias pré-concebidas que possamos ter, é fundamental que se discutam estes temas nos tempos que se avizinham. Se tal não for feito, num período em que estão ainda bem vivas as dificuldades que todos na área da saúde sentem, perder-se-á uma oportunidade única nas nossas gerações. É necessário garantir que numa próxima pandemia – pois é seguro que existirá uma próxima – não estejamos predestinados a cometer os mesmos erros do passado. Mas para que isso não seja uma inevitabilidade, há que aprender com tudo o que passámos e decidir com base na reflexão desapaixonada de dados objetivos. Só assim, e uma vez curadas as feridas desta pandemia, poderemos sair mais fortes de toda esta tormenta.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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