• Maria Laura Neves
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Na manhã de janeiro em que recebeu Marie Claire na sede da Rede Sustentabilidade, o partido que ocupa três conjuntos de um prédio residencial em Brasília, Marina Silva, 60 anos, vestia uma camisa branca de gola e punhos rendados (que ela mesma passou), saia preta e o indefectível coque. Com o rosto maquiado e na companhia do assessor de imprensa, entrou na sala de reunião, onde a aguardávamos, falando ao celular. “Obrigada, obrigada”, dizia. “Ele era assim mesmo.” O telefonema era em solidariedade pela morte de seu pai, Pedro Augusto da Silva, que falecera dias antes, aos 90 anos, e motivo pelo qual chorou algumas vezes durante a entrevista. “Meu pai comemorou o nascimento de cada uma de suas sete filhas, ainda que ter meninas não fosse motivo de comemoração no seringal”, contou, emocionada.

Graças a essa postura dele, e à personalidade forte da mãe, Maria Augusta, a Nega, que morreu em decorrência de um aneurisma aos 37 anos, que Marina teve um destino diferente do da maioria das mulheres do seringal Bagaço, no interior do Acre, onde nasceu. “O casamento infantil era uma prática comum, mas esse tipo de proposta nem chegava em casa”, conta. Nesse caminho improvável, aos 16, decidiu aprender a ler e, quatro anos depois, cursou história em uma universidade em Rio Branco.

Marina Silva (Foto: Bob Wolfenson)

Marina Silva (Foto: Bob Wolfenson)

Depois disso, a trajetória já se tornou célebre: aprendeu a teologia da libertação, uniu-se a movimentos de esquerda, ajudou a fundar a CUT e o PT em seu estado. Foi vereadora, deputada, senadora e ministra, até que compôs a equipe do alto escalão do governo Lula. Foi quando rompeu com o partido que a projetou para alçar voo solo, agarrada ao discurso de que representa, ela própria, uma alternativa à polarização política brasileira. Filiou-se ao PV, concorreu à Presidência da República. Saiu outra vez de um partido, fundou a Rede e tentou de novo a presidência. Candidata novamente em 2018, aparece em terceiro lugar nas pesquisas – é a mulher mais bem colocada, à frente de Manuela d’Ávila (PCdoB). Leia, a seguir, trechos da conversa. A integra da entrevista está na edição de março de Marie Claire.

MC A senhora se considera feminista?
MS Defendo os valores do feminino e entendo que isso é uma contribuição civilizatória, não uma contraposição ao masculino. Pensando sobre o machismo, não encontro uma situação em que tenha sido agredida por ser mulher. A não ser quando olho para o processo eleitoral de 2014, quando fui alvo de mentiras para diluir minha identidade e transformada em uma pessoa de elite, totalmente insensível ao sofrimento das pessoas em extrema pobreza. Será que isso seria feito da mesma forma e com a mesma intensidade se eu fosse homem? Até minha compleição física foi usada, por eu ser magra. Mas ainda é uma pergunta.

MC O impeachment de Dilma Rousseff teve um componente misógino?
MS Alguns levantam isso, no entanto nós tivemos um impeachment feito contra um homem, também fruto de grandes mobilizações. Ter um impeach­ment contra uma mulher em situação de grandes mobilizações cria um espaço de equidade.

MC Já sofreu algum tipo de violência sexual?
MS Nunca. Quando éramos crianças, tínhamos uma espingarda. Eu e minhas irmãs a levávamos para cortar a seringa. Só uma delas sabia atirar e a gente se dividia na estrada para fazer o serviço mais rápido. Ou seja... não adiantava muita coisa. Mas havia esse medo porque éramos ali talvez as únicas mulheres que cortavam seringa. Minha mãe tinha medo por ser um espaço dos homens. As meninas casavam muito cedo. Havia, inclusive, uma cultura de encomendar casamentos. Como pertenço a uma família de matriarcas, esse tipo de proposta nem chegava perto. Minha mãe era uma tigresa na defesa do feminino e, pelo lado do meu pai, minha avó era a matriarca forte.

MC Como essas mulheres te influenciaram?
MS O feminino, na minha vida, é uma composição de firmeza e leveza. A firmeza da minha mãe, que morreu aos 37 anos [vítima de um aneurisma]. Ela tinha muita força emocional e física – era capaz de pegar um pandeiro de mandioca cheio e jogar nas costas em um único movimento com cinco meses de gravidez – e autoridade moral. A governança de casa era dela. Minha avó era leve. Tínhamos uma ligação muito forte, morei com ela. Era parteira e fazia partos a qualquer hora da noite. Fosse chovendo, fosse na friagem, botava o pé no caminho do varadouro, andava horas para fazer um parto. Depois, ficava uma semana cuidando do bebê. Foi ela quem me deu os rudimentos do cristianismo e por causa dela quis ser freira.

MC Um caminho que não seguiu. Por quê?
MS Fiz o pré-noviciado no fim da adolescência e, nesse período, descobri a teologia da libertação e me encontrei. Era uma visão de fé e de Deus que incluía a defesa dos seringueiros e dos índios, um engajamento com o qual me identificava. Meu pai era seringueiro. Quando chegou o momento de fazer os primeiros votos e virar noviça, aos 19 anos, optei por não seguir essa carreira.

MC Sua formação política se deu pela teoria marxista. Chegou a questionar a própria fé?
MS Quando entrei em contato com o marxismo-leninismo na universidade, sim, problematizei minha fé. Olhando para tudo aquilo, agradeço profundamente a Deus porque mesmo as obras que não têm cunho religioso acabaram fortalecendo minha fé. Depois desse “encontro de contas” com o marxismo-leninismo e com a psicanálise, que é de uma influência muito grande, saí dos dogmas, das caixinhas fechadas, da dualidade opositiva para olhar melhor para a complexidade e verificar paradoxos. Por exemplo, não consigo deixar de perceber lampejos do amor e do brilho de Deus na filosofia de Hannah Arendt. Quando ela fala sobre o poder do irreversível e do imprevisível na condição humana é algo que me emociona, filosófica, intelectual, mas também espiritualmente.

MC Você estudou psicanálise e suponho que tenha se submetido a um divã...
MS Fiz análise durante um bom tempo da minha vida e me dei alta [risos]. Minha experiência com a psicanálise foi interessante. Eu era estudante de história, estava grávida do segundo filho e fui ao banheiro da universidade, quando minhas amigas entraram e começaram a conversar sem saber que eu estava ali. Foi um papo muito estranho: “Mas a Marina se envolve com muita coisa: movimento estudantil, Chico Mendes, sindicato, centro acadêmico, partido... Acho que ela não gosta do marido e dos filhos”. Comecei a chorar ali mesmo. Fui direto para a biblioteca, numa angústia enorme. Abri um livro em uma página que dizia: “O amor por uma pessoa que não é acompanhado de um profundo amor pela humanidade pode ser chamado de tudo, menos de amor”. Fui psicanalisada no mesmo momento e consegui transformar em palavras o que sentia mas não tinha repertório para falar para as minhas amigas.

MC Seu primeiro casamento, com o técnico elétrico Raimundo Souza e que durou cinco anos, acabou por causa do ativismo...
MS Sim. Eu era muito jovem quando me casei e me dedicava muito aos meus ideais. Os conflitos se tornaram inconciliáveis.

MC Ele foi seu primeiro amor?
MS [risos] Ele foi meu primeiro namorado. Meu primeiro amor foi a religião.

MC Seu atual marido, Fábio Vaz, também trabalha com política. Como ele lida com seu protagonismo e exposição?
MS Ele tem uma atuação política mas não eleitoral. Ele sempre me deu suporte com os filhos, apoio. Minha família, aliás, é bem tribal. Minhas duas sogras sempre me ajudaram muito. A mãe do Fábio, dona Neide, é uma segunda mãe. Mas ele não se preocupa com meu protagonismo político. Pelo contrário. Torce e muitas vezes paga um preço alto pelo fato de ser meu marido, como quando inventaram que ele tinha envolvimento com madeireiros.

MC E como isso afeta seus filhos?
MS O fato de eu ter me engajado criou uma falta na vida deles, claro, mas me sinto melhor tendo conquistado meus sonhos essenciais, de não ter aberto mão deles. Meus filhos são incentivados a fazer o mesmo, não por palavras, mas porque têm o exemplo em casa. Também sempre me preocupei que tivessem uma vida dentro dos padrões do que éramos, de filhos de professora. Nunca teve essa coisa de “sabe de quem sou filho?”. Pelo contrário. Nunca usaram isso para nada.

MC Falando agora sobre política e a reforma da Previdência, a senhora costuma dizer que é contra a proposta apresentada pelo presidente Michel Temer porque ele não foi eleito e, logo, não tem representatividade. Por outro lado, orientou os parlamentares da Rede a apoiar o impeachment de Dilma Rousseff. Isso não é uma contradição?
MS Quando digo que não tem legitimidade é porque ele não debateu isso com a sociedade. Nem ele, nem a Dilma. Não vamos nos esquecer, eles são uma unidade. Ninguém elege vice-presidente. O impeachment não foi golpe. Foi feito com base na lei de crime de responsabilidade. Existem aqueles que advogam, dentro da própria Rede, que não deveria haver o impeachment. Isso foi inteiramente acolhido e trabalhado. Dois parlamentares votaram a favor, dois contra e eu firmei meu convencimento favorável.

MC Uma das críticas mais recorrentes à senhora é a de que só participa ativamente do jogo político durante o período eleitoral. Como responde a isso?
MS Obviamente quando não se está na tribuna há uma diferença de holofote, de exposição. Em 2015, por exemplo, trabalhei o ano como professora convidada da Fundação Dom Cabral e tinha que ir quase todas as semanas para Nova Lima dar as aulas. Além disso, acredito que as pessoas não consideram o discurso que não é o da maioria, o da polarização, como um discurso. Quem vem dizendo desde sempre que é a favor da Lava Jato? Que o melhor caminho era caçar a chapa Dilma-Temer e convocar uma eleição? Que não se deve ter foro privilegiado, nem apoiar e aprovar caixa 2? Isso não é uma fala? Não são propostas? Omissão é ver a situação em que o país está e defender que se continue do mesmo jeito. Quem foi que sugeriu que se levasse o caso do Aécio Neves ao Conselho de Ética para que pudesse ser avaliado do mesmo jeito que o do Delcídio do Amaral? Quem foi que entrou no Supremo para que quem está sendo investigado não fique na linha sucessória?

MC Um ponto sensível, que sempre é abordado em tempos de eleição, é a legalização do aborto. Hoje, uma mulher morre a cada dois dias no Brasil em decorrência de um procedimento malfeito. Como vê isso?
MS Sou contra o aborto por uma convicção filosófica e de fé, e a mulher que o pratica com certeza sofre marcas no corpo e na alma. Não é algo que devemos desejar para ninguém, mas, infelizmente, o que temos é uma prática feita com prejuízos para a vida da mulher. Desde 2010, defendo que se faça um debate sobre essa questão.

MC Um plebiscito?
MS Sim, mas é preciso haver um debate mesmo, não uma satanização de ambos os lados. Sou contra o aborto, mas não advogo que uma mulher que pratique aborto deva ser presa. Pelo contrário. Deve ser acolhida porque já está vivendo as dores e as marcas de um recurso extremo. Devemos ter um debate no âmbito da saúde pública.

MC Então é a favor da descriminalização?
MS A criminalização, como vem sendo feita, não ajuda a diminuir o número de abortos. Sou a favor de um debate que nos leve ao resultado que queremos: que as mulheres não precisem abortar.

MC Outro ponto sensível abordado na sua candidatura é o ensino do criacionismo [teoria segundo a qual todos os seres foram criados por Deus] nas escolas. Continua a favor?
MS Nunca advoguei que as escolas ensinassem o criacionismo. Dei uma entrevista para um estudante de comunicação de uma escola confessional, que me perguntou o que achava do ensino do criacionismo dentro da escola. Minha resposta foi exatamente esta: desde que ensinem também a teoria da evolução, não vejo problema”. Estudei no Instituto Imaculada Conceição, que me ensinou tanto a visão bíblica da criação quanto a teoria da evolução. Aliás, Darwin também tinha origem religiosa.

MC E com qual a senhora ficou?
MS Consigo manejar adequadamente as duas. Edgard Morin me ajudou muito porque essa realidade que as pessoas querem impor, de que você é uma coisa ou outra, é muito pobre. Quando olha para mim, você vê um corpo biológico, mas também sou um corpo afetivo, emocional, cognitivo, ético, estético. Nada disso você vê.